Histórias da Conquista do Cosmos – As missões Intercosmos (I)

Pioneira em diversos aspectos do voo espacial tripulado, a União Soviética arrebatou outro primeiro lugar ao ser o primeiro país a colocar em órbita um viajante espacial que não provinha das duas super-potências.

O Programa Intercosmos (também conhecido como Concelho Internacional para a Exploração e Uso do Espaço Exterior) foi acima de tudo um programa de cooperação científica entre os países do então chamado Bloco de Leste constituído por nações que se encontravam na esfera de influência da União Soviética. Criado em finais 1965 pela Academia de Ciências Soviética, o seu principal objectivo era a coordenação entre vários ministérios científicos e departamentos envolvidos em programas internacionais. Como função primária estava a organização e cooperação em campos científicos não só com os países da Europa de Leste, mas também com outros estados comunistas.

O Programa Intercosmos teve duas vertentes: a primeira foi composta por uma série de satélites científicos não tripulados lançados ao abrigo de vários programas, e o lançamento de veículos sub-orbitais no Programa Vertikal; a segunda foi a realização de uma série de voos espaciais tripulados, tendo como destino a estação espacial Salyut-6, que levaram a bordo cosmonautas da Checoslováquia, Polónia, República Democrática Alemã, Hungria, Vietname, Cuba, Mongólia e Roménia.

Com a introdução de estações espaciais com dois portos de acoplagem (ou mesmo com seis como no caso da estação espacial Mir), a União Soviética avançou para ocupações mais prolongadas em órbita. As tripulações que permaneciam nas estações espaciais eram regularmente abastecidas por cargueiros Progress, mas no entanto havia também a necessidade de substituir as cápsulas Soyuz em órbita devido ao seu limite de vida de 90 dias. Como muitas das tripulações permanentes permaneceriam mais do que este período em órbita terrestre, foram realizadas missões de curta duração com o intuito de trocar as cápsulas, regressando a tripulação visitante no veículo que há mais tempo se encontrava em órbita.

Com a realização destes voos de curta duração foi pensada uma maneira de tirar o melhor proveito possível destas missões, sendo assim oferecida a oportunidade de voar no espaço a representantes de nações comunistas ou dentro da esfera de influência da União Soviética.

Devido ao sucesso principalmente político resultante destas missões, a União Soviética deu oportunidades a outros países para participarem em voos espaciais tripulados. Assim, nações como a França, Índia, Síria e Afeganistão, tiveram a oportunidade de enviar seus representantes para a Salyut-7 e Mir. Numa fase posterior, e muito devido à abertura do regime e a necessidades económicas, países como a Áustria, Inglaterra e Japão, lançaram cosmonautas a bordo de veículos soviéticos.

Sendo missões criadas principalmente por motivos políticos e das quais a União Soviética tirou grandes dividendos a nível de propaganda, as nações convidadas tiveram a oportunidade de obter resultados científicos importantes ao longo dos voos. Obviamente que estes resultados também foram importantes para a União Soviética que assim obteve resultados científicos de experiências realizadas por outros países.

As áreas científicas principais que mereceram a atenção do Programa Intercosmos foram a Física Espacial, Meteorologia Espacial, Biologia Espacial, Medicina e Comunicações, além do estudo dos recursos terrestres e do planeta em geral com o auxílio das tecnologias espaciais.

O Programa Tripulado Intercosmos

Este artigo irá debruçar-se somente sobre a primeira fase das missões Intercosmos que decorreram entre Março de 1978 e Maio de 1981.

Em Julho de 1976 realiza-se em Moscovo uma conferência entre os membros Intercosmos durante a qual a União Soviética propõe a realização de missões espaciais tripuladas aos representantes da Checoslováquia, República Democrática Alemã, Polónia, Bulgária, Cuba, Hungria, Mongólia e Roménia. Já durante a conferência são discutidos os métodos de selecção dos candidatos a cosmonauta bem como o seu treino na União Soviética. O encontro terminou a 13 de Julho com a assinatura de um acordo de cooperação para a exploração e uso pacífico do espaço exterior. Um acordo mais específico é posteriormente assinado a 14 de Setembro desse mesmo ano, tendo ficado estabelecido que os voos tripulados iriam decorrer entre 1978 e 1983, dependendo da disponibilidade de veículos e equipamento, e que o Comandante da missão seria um cosmonauta soviético, sendo auxiliado por um Engenheiro de Voo proveniente dos países amigos.

A assinatura dos tratados que permitiram a realização dos voos espaciais tripulados Intercosmos. Imagem: arquivo fotográfico do autor.

Entre Abril e Junho de 1979, três novas nações (Vietname, Índia e França) juntar-se-iam às restantes convidadas para levar a cabo voos tripulados, mas no entanto só o cosmonauta vietnamita voaria no âmbito do Programa Intercosmos.

Treino e planeamento das missões Intercosmos

Com o lançamento da Salyut-6 (10382 1977-097A) a 29 de Setembro de 1977, a União Soviética anunciou que a estação seria ocupada por três tripulações de longa duração, ou permanentes. Assim, os voos Intercosmos seriam realizados durante a permanência destas três tripulações em órbita.

Os países participantes no Programa Intercosmos procederam então à selecção dos respectivos cosmonautas provenientes das suas forças militares. A primeira selecção teve lugar em Dezembro de 1976, sendo os primeiros países a seleccionar os seus cosmonautas a Checoslováquia, Polónia e República Democrática Alemã. As selecções iniciaram-se na Checoslováquia no início do Verão de 1976 com a selecção inicial de 100 candidatos. Destes 100 candidatos, 20 foram seleccionados em Julho de 1976 para exames médicos e físicos realizados no Instituto de Aviação Militar da Checo. Foram seleccionados 8 candidatos em Outubro desse ano que foram enviados para a Cidade das Estrelas em Novembro, tendo chegado no dia 10. Aí, os candidatos permaneceram durante duas semanas a realizar uma variedade de testes antes de regressarem à Checoslováquia. Os nomes dos dois seleccionados foram divulgados a 25 de Novembro, tendo estes regressado à União Soviética a 6 de Dezembro.

Um processo semelhante teve lugar na Polónia onde o Instituto Militar para a Psicologia e Medicina da Força Aérea da Polónia elaborou os critérios básicos para a selecção dos candidatos a cosmonauta. Requeria-se que os candidatos tivessem um nível universitário, experiência como pilotos aeronáuticos e conhecimento de vários assuntos científicos que seriam abrangidos durante o voo espacial. Os especialistas polacos enveredaram a sua selecção para os pilotos militares e baseados nos imensos registos médicos e dados pessoais, conseguiram obter uma lista de várias centenas de potenciais candidatos. Após uma série de testes foram obtidos 18 candidatos em Agosto de 1976. Este grupo foi submetido a mais uma série de testes e em resultado foram seleccionados cinco candidatos que foram enviados para o Centro de Treino de Cosmonautas Yuri Gagarin, onde começaram mais uma série de testes a 10 de Novembro. A Comissão Médica decidiu que os cinco candidatos estavam aptos para iniciarem o treino e baseados nos dados obtidos pela comissão, os especialistas polacos elegeram dois candidatos que foram enviados para a União Soviética para iniciarem o treino de cosmonauta.

O processo voltou-se a repetir da Alemanha Democrática com a selecção de 30 candidatos dos quais 4 foram enviados para a União Soviética.

Todos os candidatos dos diferentes países eram oficiais militares e muitos deles haviam já estudado na União Soviética.

País Candidatos seleccionados
Checoslováquia Oldrich Pelczak
Vladimir Remek
Polónia Zenon Jankovski
Tadeus Kuziora
Andrei Bulgala
Miroslaw Hermaszewski
Henrik Halka
República Democrática Alemã Sigmund Jähn
Eberhard Golbs
Eberhard Kohllner
Rolf Berger

Uma segunda selecção teve lugar em Abril de 1978 com a Roménia, Cuba, Hungria, Bulgária e Mongólia, a procederam à selecção dos seus cosmonautas. O Vietname faria a sua selecção em 1979. A Roménia seleccionou 100 candidatos dos quais 3 engenheiros foram enviados para a União Soviética em Dezembro de 1977. Destes três Dumitru Dediu e Dumitru Prunariu foram seleccionados para o treino de cosmonauta, mas como Prunariu era civil, teve ingressar na Força Aérea Romena. Em Cuba foram seleccionados 9 candidatos dos quais 4 foram enviados para a União Soviética. O processo de selecção na Mongólia é ainda pouco conhecido, sabendo-se somente que a selecção dos dois candidatos definitivos para o voo foi feita em Janeiro de 1978. Por seu lado, a Bulgária enviou 6 candidatos para a União Soviética. Destes fazia parte Chavdar Djurov, filho do Ministro da Defesa Nacional da Bulgária, e Georgy Kakalov. Curiosamente Kakalov viu o seu nome alterado para Ivanov, pois Kakalov parecia muito obsceno em russo!!!

País Candidatos seleccionados
 Cuba Arnaldo Tamayo-Mendez
 José Lopez-Falcon
 Roménia Dumitru Dediu
 Dumitru Prunariu
 Christian Guran
 Mongólia  Jugderdimdyn Gurragcha
 Maidarjavin Ganzorig
 Bulgária  Kyril Radev
  Georgy Kakalov (Ivanov)
Ivan Nakov
Chavdar Djurov
 Alexander Alexandrov
Georgy Lovchev
Hungria Imre Buczko
Bertalan Farkas
Bela Magyari
Laszlo Elek
 Vietname  Pham Tuan
Bui Thanh Liem
Nguyen van Quoc
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Na Hungria uma selecção inicial de todos os pilotos da Força Aérea Húngara resultou numa lista de mais de mil potenciais candidatos. Em finais de Setembro de 1977 somente restavam 20 nomes na lista e estes foram submetidos a um processo de selecção intenso durante duas semanas levado a cabo no Instituto Científica para a Aviação em Kecskeme. O processo de selecção constava de provas médicas e psicológicas onde a força de vontade, inteligência, temperamento, carácter, auto-controlo e resistência física do candidato foram avaliados. Deste grupo de 20 candidatos, 4 foram enviados para a União Soviética a 21 de Janeiro de 1978 onde foram submetidos a mais cinco semanas de testes e exames. Regressaram do Centro de Treino de Cosmonautas a 28 de Fevereiro e os resultados da selecção foram anunciados no dia seguinte. Bertalan Farkas e Bela Magyari foram seleccionados para o treino básico de cosmonauta que iniciaram a 13 de Março.

Finalmente, o Vietname procedeu à escolha dos seus 4 candidatos em Abril de 1979. Destes somente três nomes são conhecidos.

O treino dos cosmonautas Intercosmos foi muito intenso com uma primeira parte dedicada a estudos teóricos ao mesmo tempo que adquiriam experiência em aviões a jacto, realizavam testes físicos, simulavam voos em gravidade zero e praticavam procedimentos elementares de recolha após o voo espacial, incluindo amaragens e recolha por meio de helicópteros em florestas densas, montanhas e outros terrenos extremamente difíceis. A segunda fase do treino consistiu no estudo dos sistemas da Soyuz e sua utilização, além do programa de voo específico para a respectiva missão.

A 9 de Outubro de 1977 é lançada desde o Cosmódromo NIIP-5 Baikonur a cápsula espacial Soyuz-25 tripulada pelos cosmonautas Vladimir Vasilievich Kovalyonok e Valeri Viktorovich Ryumin. Estes dois homens deveriam ter sido a primeira tripulação a receber os cosmonautas Intercosmos, no entanto a cápsula não conseguiu acoplar à estação espacial Salyut-6 e teve de regressar à Terra no dia 11 de Outubro. Em resultado dos problemas com a Soyuz-25 só uma tripulação Intercosmos visitou a primeira tripulação permanente da Salyut-6 e o plano de voos foi alterado incluindo-se mais uma missão de longa duração.

Tripulação permanente Representante Intercosmos
Soyuz-26

Yuri Romanenko; Georgy Grechko

Checoslováquia
Soyuz-29

Vladimir Kovalyonok; Alexander Ivanchenkov

Polónia; República Democrática Alemã
Soyuz-32

Vladimir Lyakhov; Valeri Ryumin

Bulgária; Hungria; Cuba
Soyuz-35

Leonid Popov; Valeri Ryumin

Mongólia; Roménia

Os primeiros três voos Intercosmos decorreram sem problemas. A 10 de Abril de 1979 é lançada a Soyuz-33 levando a bordo o primeiro cosmonauta búlgaro. Devido a um problema com os motores da Soyuz, esta não conseguiu acoplar à Salyut-6, originando a decisão de adiar todos os voos até ao lançamento da nova tripulação de longa duração. Assim, os voos que transportaria os cosmonautas húngaro e cubano foram adiados por um ano e nesta altura procedeu-se à adição de um voo com um cosmonauta vietnamita. O voo de Pham Tuan foi inserido entre o voo do cosmonauta húngaro e do cosmonauta cubano por duas razões: a primeira devido ao sistema alfabético utilizado para determinar a ordem em que cada voo se deveria realizar, e a segundo devido a razões de propaganda política pois o voo deveria ter lugar próximo dos Jogos Olímpicos de Moscovo.

Após o voo do representante de Cuba faltaria levar a cabo duas missões com um cosmonauta da Roménia e da Mongólia. Assim, foi introduzida outra tripulação de longa duração constituída por Vladimir Kovalyonok e Viktor Savinykh. A missão romena teria de ser lançada para a estação Salyut-6 devido a uma experiência denominada ASTRO que utilizaria a instrumentação ASTRO-1, colocada no exterior da estação, e a instrumentação ASTRO-2 colocada no exterior do veículo Soyuz. De salientar que Kovalyonok e Savinykh regressaram à Terra quatro dias após o fim da missão romena, dando assim mais peso ao argumento de que a sua missão teria sido incluída para permitir a conclusão do Programa Intercosmos. Assim, o plano de voos Intercosmos foi o seguinte.

Tripulação permanente Representante Intercosmos
Soyuz-26

Yuri Romanenko; Georgy Grechko

Checoslováquia
Soyuz-29

Vladimir Kovalyonok; Alexander Ivanchenkov

Polónia; República Democrática Alemã
Soyuz-32

Vladimir Lyakhov; Valeri Ryumin

Bulgária
Soyuz-35

Leonid Popov; Valeri Ryumin

Hungria; Vietname; Cuba
Soyuz T-4

Vladimir Kovalyonok; Vikytor Savinykh

Mongólia; Roménia

Quando foi tomada a decisão de realizar os voos Intercosmos teve também de se decidir qual a ordem pela qual estes países iriam voar. Nunca surgiu uma explicação para o facto de ter havia duas selecções para o Programa Intercosmos (uma em 1976 e outra em 1978). Da mesma forma também não existe uma explicação para a ordem de voo dos três primeiros países a voar (Checoslováquia, Polónia e República Democrática Alemã). Porém, foi estabelecido um padrão de voo para os restantes países cujos representantes foram seleccionados em 1978, além do Vietname. Os lançamentos foram realizados por ordem alfabética utilizando o alfabeto cirílico e os nomes russos dos respectivos países.

País Em Língua Russa Em cirílico
Bulgária Bolgaria БОЛГАРИА
Hungria Vengria ВЕНГРИА
Vietname Vietnan ВьЕТНАМ
Cuba Kuba КУБА
Mongólia Mongolia МОНГОЛНА
Roménia Rumanya РОМЕНИА

Não deixa de ser irónica a escolha do alfabeto russo para ordenar a sequência dos voos dos países Intercosmos, dando assim a impressão de uma escolha neutral num programa que só existia por razões políticas e de propaganda. Por outro lado, tinha a vantagem de não forçar os soviéticos a fazerem uma escolha e a julgar a lealdade entre os seus aliados. Um outro aspecto importante era o facto de este sistema colocar a Roménia como o último país a realizar um voo espacial, estando as relações com a Roménia um pouco abaladas nos finais dos anos 70.

Segunda Parte: Os voos tripulados Intercosmos